Faz um bom tempinho, um bom tempinho, que eu e o companheiro Felipe Canova, escrevemos este artigo sobre o filme "A Vida dos Outros", para o jornal Brasil de Fato. Publico hoje ele aqui porque acredito que uma boa indicação de filme nunca envelhece. Para se ter uma idéia outro dia fiquei com uma vontade louca de assitir novamente ao filme Inimigo Meu. Enfim....
Sem mais, segue o artigo.
Sonata para um bom camarada
"A Vida dos Outros", do diretor Von Donnersmarck, mostra uma República Democrática Alemã (RDA) orwelliana e provoca reflexão sobre as contradições do país então dividido
Felipe Canova e Nina Fideles
1984, Berlim Oriental. Um professor calvo, magro e de olhar frio, instrui um punhado de alunos sobre como obter informações num interrogatório. Entre as cenas do suspeito em desespero e a análise robótica da gravação, descobrimos que a especialidade do professor e personagem central do filme, o Capitão Wiesler, dá título ao filme: “A Vida dos Outros”.
Dirigido pelo nascido na Alemanha Ocidental Florian Henckel Von Donnersmarck, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2007 e de diversos prêmios internacionais, o filme se propõe a mostrar uma República Democrática Alemã (RDA) orwelliana, ao focar seu interesse na Stasi (Ministerium für Staatssicherheit, Ministério para a Segurança do Estado).
A Stasi - “escudo e espada do partido” - segundo Wiesler tinha 90 mil policiais diretamente vinculados, apoiados por um conjunto de 300 mil informantes, ou seja, um em cada cinqüenta alemães orientais possuía alguma espécie de vínculo com essa polícia. Segundo Donnersmarck, sua abordagem foi relacionada ao medo e à opressão que o aparato da Stasi causava na vida dos alemães.
Contudo, não espere desse filme uma análise histórica densa ou uma crítica sistematizada ao Estado na experiência do “socialismo real”. O que temos em “A Vida dos Outros” são belos achados, em meio aos limites do entretenimento e de um drama convencional, que nos instigam a refletir as contradições da dividida Alemanha, principalmente no que se refere ao indivíduo.
O principal desses achados é o próprio personagem do Capitão Wiesler, representado por Ulrich Mühe, que ao contrário dos seus comparsas de Stasi e do próprio Estado, presentes no filme, foge dos clichês e se transforma durante a narrativa. Mühe, morto em 2007, foi um dos maiores nomes do teatro da RDA e no período anterior à queda do muro de Berlim participou das mobilizações em favor da reunificação, tendo sido espionado pela própria mulher, também atriz e informante da Stasi.
Espionagem
No filme, o Capitão Wiesler espiona o casal Dreyman e Christa, grandes nomes do teatro local. Dreyman é o dramaturgo de maior reconhecimento no país, um artista aceito pelo sistema e também do Ocidente mesmo “sem ser subversivo”. É amigo da mulher do presidente, e dentre tantas qualidades ainda é o estereótipo do galã, belo, sorridente e bem resolvido com a igualmente bela Christa, atriz de renome do teatro alemão. Christa, entretanto, não é segura artisticamente como Dreyman, tendo que recorrer a remédios ilegais e para manter sua posição de atriz de primeiro time cede ao assédio sexual do ministro da Cultura, Hempf.
Munido de muitas escutas posicionadas por sua equipe nas paredes da casa de Dreyman e Christa, Wiesler acompanha cada suspiro do casal e projeta na vida dos outros a sua tão vazia e cinza existência. O personagem central então se despe da alcunha de capitão e coloca em segundo plano toda a responsabilidade de espionagem que lhe era de costume. Wiesler inicia a sua metamorfose. Encontra nas situações vividas entre Dreyman e Christa, anseios e angústias de sua própria vida.
O acontecimento limite no processo que Wiesler vive é o suicídio do grande amigo de Dreyman, o diretor de teatro “não-adaptado”, presente na lista negra do Estado, Jerska. A dor de Dreyman e a cumplicidade de Wiesler se unem de vez, quando o primeiro toca ao piano a “Sonata para um Homem Bom” e Wiesler se emociona e chora. O próprio suicídio de Jerska transfere alguma parcela de culpa ao capitão, pelo que ele representa, e ao ator, que de certa forma se omitia desta situação. O Estado matou aos poucos seu velho amigo, o privando de sua arte, e ele nada fez.
Um outro achado que merece registro é a caracterização da RDA na fotografia, que insere o espectador numa atmosfera de vazio e melancolia usando panorâmicas de câmera fixa e grande angular em tons de cinza azulado. Constrói também salas de interrogatório pesadas, no mesmo cinza, e cria o contraste entre os ambientes de Dreyman – com tons mais vivos e detalhes - e os de Wiesler, monocromáticos.
O uso de boas metáforas visuais, como as passagens do carro de Wiesler na panorâmica escura quando ele parte do ambiente de Dreyman para seu ambiente real e a seqüência de galhos secos antes da reunificação das Alemanhas, reforçam o ponto de maior peso em “A Vida dos Outros”: a possibilidade de mudança de um homem.
Esta transformação é apresentada de maneira sutil, e ao mesmo tempo escancarada. Porque para um “soldado” da Stasi, que até então tinha práticas desumanas e perversas de interrogação e, depois, se coloca em risco para proteger a vida alheia é uma mudança abrupta, mas os elementos responsáveis por estas mudanças vão surgindo levemente ao longo do filme em forma de poesia, música e sentimentos.
Ao “observar” a vida dos outros, Wiesler se descobre um pouco mais na sua própria sonata.
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